Comentário do Dia
No jornal porto-alegrense Zero Hora deste sábado, 10/09/2005, à página 32, lê-se uma reportagem sobre um carteiro, que achou na rua e devolveu a quantia de R$ 1.750,00 pertencente ao dono de uma farmácia. O dinheiro estava junto a boletos bancários, o que permitiu a identificação do proprietário. Foi no dia do ciclone extra-tropical no RS, sexta-feira, 02/09/2005. O bolo de dinheiro e os boletos, presos juntos, estavam no chão, entre o meio-fio e uma automóvel estacionado.
Ao ser questionado sobre seu gesto, o carteiro, Neri Lúcio Zvir, 46 anos, disse:
- Se o dinheiro não é meu não posso ficar. Somente me coloquei no lugar dele.
Até aí, todas as pessoas honestas concordam com o gesto dele. Mas, por que dizer, que Adam Smith venceu? Pelo critério adotado, intuitivamente ou não, por educação ou não, pelo senhor Zvir: "somente me coloquei no lugar dele".
Em sua obra moral, pouco conhecida dos que não são leitores regulares dos textos de Adam Smith, encontra-se formulada, filosoficamente, a mesma regra racional explicitada pelo carteiro, morador da cidade de Novo Hamburgo, região metropolitana de Porto Alegre: "somente me coloquei no lugar dele".
Vamos, então, ao texto do tio Adam. Trata-se da obra "The Theory of Moral Sentiments" (1759), anterior ao famoso "An Inquiry into the Nature and Causes of The Wealth of Nations" (1776), mais conhecido, no Brasil, como "Riqueza das Nações".
Smith funda a sua teoria moral no sentimento de simpatia. Mais. Funda o julgamento moral no princípio da simpatia. Ele discorre sobre ele longamente. Sem repeti-lo (afinal, isto aqui é um blog), concatenemos o coletor de impostos e filósofo Smith com o carteiro e grande homem Zvir.
No primeiro capítulo, da primeira secção, da primeira parte da obra "Theory of Moral Sentiments", encontramos:
- In every passion of which the mind of man is suscetible, the emotions of the by-stander always correspond to what, by bringing the case home to himself, he imagines should be the sentiment of the sufferer [of the passion].
(Em todas as paixões das quais a mente do homem é suscetível, as emoções do próximo sempre correspondem ao que, ao trazer o caso para si mesmo, ele imagina deveria ser o sentimento do sofredor [da paixão].) Página 10, edição Liberty Fund, 1982.
A frase acima pode ser considerada axiomática no sistema de Smith.
Outra frase destacável, está na página 12:
- Sympathy, therefore, does not arise so much from the view of the passion, as from that of the situation which excites it.
(A simpatia, portanto, não surge tanto da visão da paixão, mas da situação que a excita.)
O princípio da simpatia, no qual Smith funda seu sistema moral e, também, o julgamento moral, não é egoísta, diz ele, na melhor tradição cristã. Pule-se para a página 317.
- " ... I consider what I should suffer if I was really you, and I not only change circumstances with you, but I change persons and characters. My grief, therefore, is entirely upon your account, and not in the least upon my own. It is not, therefore, in the least selfish."
(... considero o que deveria sofrer se eu fosse realmente você, e eu não apenas troco de circunstância com você, mas eu troco pessoas e caráteres. Meu pesar, portanto, está inteiramente sobre tua conta, e nem sequer ao menos sobre minha conta. Não é, portanto, ao mínimo, egoísta.")
Assim, fica evidenciada a regra adotada pelo carteiro Zvir ("somente me coloquei no lugar dele"), e a regra formulada filosoficamente por Smith, expressa nos dois excertos destacados.
Para os que defendem uma moralidade fora da religiosidade, isto é, sem Deus, o sistema, resumidamente falando, é o da noção de sacrifício. Uma pessoa não pode viver a sua vida, através do sacrifício da vida alheia. Nem ser sacrificado, como meio para a vida de outra pessoa. Se alguém encontra a propriedade alheia e sabe a quem pertence, devolve-a, pois sua vida, sua mera existência, não autoriza o sacrifício, o uso, da vida de outras pessoas, logo, do que lhes pertence.
Mas, o mais importante, nesta breve nota factual-filosófica, era destacar que Adam Smith formulou teoricamente, aquilo que foi vivido por um carteiro, no início deste mês de setembro.
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