segunda-feira, outubro 03, 2005

O mito da gratuidade no Brasil

[Este artigo é conteúdo exclusivo na web, sem publicação no mensário Folha do Porto]

No Jornal do Comércio de hoje, 03/10/2005, à página 25, uma reportagem, de óbvia origem estatal, versa dobre o desperdício de água em Porto Alegre, onde uma departamento estatal (Dmae) da prefeitura fornece água tratada e esgoto sanitário. Em resumo de sua atividade, eles garantem que água servida, oriunda de cozinhas e de vasos sanitários, seja despejada no lago Guaíba e, depois, captada e tratada, quimicamente na maior parte do processo, para consumo humano e, assim por diante, ad indefinitum.

Mas o objetivo deste artigo está em um detalhe muito importante da matéria veiculada pelo Jornal do Comércio. Ela é ilustrda por uma foto, cuja legenda diz "Ligações clandestinas geram perdas para o município". Aparentemente correta e honesta, a frase trai uma visão de mundo totalmente equivocada, pois esconde, mascara e impede o leitor de enxergar a realidade. De tanto as pessoas lerem frases do protótipo "perdas para o ente estado", seja ele Município, Estado ou União, elas acabam, sem perceber, muito menos entender, como, de fato, dão-se as relações econômicas em sociedade.

Assim, para quem enxerga mesmo o que acontece, a legenda deveria ser escrita "ligações clandestinas geram perdas para quem paga". O fato é óbvio para quem tem um mínimo de noção sobre como o mundo funciona, quando se trata de comprar e vender mercadorias/serviços. Mas parece que tal básica, elementar e comezinha noção, sobre o serviço de tratar e entregar água ainda não chegou à redação do Jornal do Comércio, diga-se de passagem, às redações de jornal em geral.

Não é o município que tem perdas com as ligações clandestinas. As perdas pertencem àqueles que pagam pela água e que, se não pagarem, têm o abastecimento cortado. Já os clandestinos, não pagam e ... não têm o abastecimento cortado.

Depravação. E estatal.

Uma empresa privada zelaria melhor pelos seus recursos e evitaria, mais do que uma estatal, a clandestinidade do consumo, seria o pensamento esperado dos defensores do laissez faire, ou seja, do capitalismo sem intervenção do Estado nas relações econômicas (exceto o de zelar pelo indivíduo, sua propriedade e seus contratos). A empresa privadamente administrada, que entregasse a mercadoria água tratada, buscaria minorar, ao máximo, a clandestinidade, pois ela compromete a sua sobrevivência. Além de encarecer o produto final para seu cliente.

A água clandestina, gratuita para quem a rouba, é caso das tais vilas populares (em Porto Alegre o poder municipal conta serem 550), onde vive o povo de renda mais baixa, embora trabalhe; onde vive o povo que não quer trabalhar (o vagabundo ladrão); povo este que recebe a maior atenção da oratória politiqueira, em especial, em ano eleitoral.

O texto do Jornal do Comércio aponta para um outro interessante tema. O do mito da gratuidade no Brasil, afirmado e reiterado na Constituição republicana de 1988. Se algo é gratuito, significa que, para existir, outro está pagando por ele. Logo, não há gratuidade.

A água dos mananciais é gratuita (por enquanto, pois a burocracia estatal, esta ditadora, está preparando mais uma taxação), mas como o ente estatal, ao não zelar por ela, permitiu-lhe a poluição, tem de cobrar tratamento. Há nisso também uma antiga e errônea suposição popular de que a água lava tudo, logo, tudo se atira à água.

Você paga para ver TV aberta? Não. Alguém paga por você, oferecendo-lhe mensagens publicitárias. Você paga para ler o jornal, em papel, Folha do Porto, se está no roteiro de distribuição? Não. Os anunciantes pagam por você, em troca de espaço publicitário no jornal, esperando que você o leia.

Outro número assustador, voltando ao tema da água tratada, está na afirmação de que o desperdício de água para consumo, no Brasil, atinge 40%, número do Ministério das Cidades, sendo de 37,77% tal índice em Porto Alegre.

O número prova, assim, que a gestão estatal da água gera a perversa gratuidade - os honestos pagam o consumo dos desonestos. E, assim, sem atentar ao centro do tema, ficando na superfície enganadora (as imagens no fundo da caverna - ver o mito criador por Platão) da questão, jornalistas e jornais colaboram para depravar a compreensão da realidade.